SONHO LARANJA

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RELATO DE UM SONHO ACAMADO

EM CINCO ESTRATOS DIFERENTES


INSTRUÇÕES PARA LER ESTE RELATO

Ler em voz alta, de preferência em solidão.

A estar acompanhado, melhor que seja com uma garrafa de água, para não ficar sem fôlego.

Uma vez acabada a primeira leitura, recomeçar até que já não haja água. Se considerar necessário pode consultar o vocabulário que aparece no fim do texto, embora totalmente prescindível.

Depois de acabada a água é aconselhável sair para passear e repetir séries de palavras. O conto cumpre assim o seu objectivo inicial: limpar a mente de lixo e desenvolver o gosto pelo vocabulário, desfazer-se da lousa do monolinguismo e praticar um amplo registo de sons.

Uma vez conseguido o registo da leitura, limpa a mente da peçonha das ideias preconcebidas, de prejuízos imobilizadores e dos preconceitos mais obscuros, a pessoa sente-se melhor. Naturalmente.


I. QUIETUDE


No início tudo era laranja. Laranja da textura da seda, como um véu laranja em todos os tons possíveis do laranja. Isso quero dizer: uma nuvem laranja, um magma laranja, um gel laranja, uma sensação laranja. Logo depois, ou provavelmente ao mesmo tempo, a expressividade das mãos. Das minhas mãos. De outras mãos. Os movimentos por impulsos, aparentemente sem ordem ou correlação com outras variáveis. As mãos movendo-se por impulsos num mar laranja. Talvez (que) isto seja o primeiro assomo da memória: a epifania dos labirintos dos neurónios, o fulgor dos movimentos por impulsos. Não sei. Não é muito fácil situar as percepções cronologicamente, uma atrás da outra, atrás da outra, atrás da outra. Acodem de forma desordenada, como se fossem números com uma cadência indecifrável. Muitas mensagens ao tempo. Em uníssono. Umas cavalgando sobre outras. As percepções. O laranja e os movimentos por impulsos. E depois está a língua na que se escuta, na que se fala, no que se percebe, a partir da que se constroem imagens que cavalgam, uma atrás da outra, atrás da outra, atrás da outra. No véu laranja. No magma laranja. No gel laranja. Que língua? Não saberia dizer, uma mistura do galaico antigo e germânico percebido como língua estranha, de latim resgatado dos labirintos da memória e romances diversos, de árabe aprendido a contra gosto e chinês sonhado, de sânscrito nebuloso e tibetano arrastado na fuga. Home. Arbeit. Sumum. Salam. Guanxi. Pomme. Carino. Hoshi-hoshi. Depois, uma palavra chegada de longe, do fundo laranja, do fundo da nuvem, dos pélagos do magma, que se move lento, numa tectónica imperfeita, de borbulhas e irisações, de lâminas sobre lâminas, de buracos no gel que se pensava contínuo. Uma palavra que pode ser Holem, ou Halam, ou mesmo Hokhim, ou provavelmente Apsara, ou Upsara, ou mesmo Samsara. Uma palavra que não consigo identificar. Uma palavra para a que não tenho imagem. E mais palavras moles, atrapalhadas, chegadas através do funil da confusão, desordenadas e terríveis. Amor. Campei. Podias. Uskok. Xiuxi. Babá. Alepo. Será laranja a cor dos sonhos que não têm cor? Será o sintoma primeiro da cegueira ou da luz, o amanhecer de uma faculdade nova, a de ver, a de perceber com os olhos, a de reconhecer imagens, a de sentir que se está no centro de um universo? No centro ou na periferia? Em cima, no meio, ou em baixo? Outono ou Primavera? Mergulhado num mar laranja ou envolto numa nuvem tóxica e laranja, como de gás letal para matar insectos, como uma fumigação, como um trânsito entre dois mundos, entre dois universos, entre dois estados do ser e da matéria? Absent mind. Tranquility. Stillness. Uma imagem que chega pela primeira vez, epifânica, nova, supernova, em laranja. Uma sensação de pisar pela primeira vez, de deixar pegadas, em que o chão se transforma ao nosso passo. Lama. Cascalho. Algo que se move. Provavelmente as duas coisas ao mesmo tempo, movendo-se debaixo dos pés. As mãos movendo-se por impulsos num mar laranja. As minhas. Outras. Os meus pés. A sensação de ter pés. A de se mover. Debaixo dos meus pés. Movendo-se. Deixando que os pés se afundem, que as mãos (as minhas?) se agitem. Por impulsos. Por ondas. Por forças arcoseno. First orange first orange first. A linguagem como obstáculo para a expressão do eu, do ego, do myself, do me, do I, do que identifica, do que diferencia, do que separa. A dificuldade de erguer os pés. O sentir-se atolado (na lama), afundando-se (no cascalho), coberto (pelo gel laranja), invadido (de imagens, de sensações, de lembranças confusas), perseguido (pela confusão, pelos impulsos, pelos movimentos das mãos, já não as minhas). Stillness. Já disse stillness. Quiçá o sentimento mais profundo. Agora. No centro ou na periferia? Em cima, no meio, ou em baixo? Lama não. Já está. Nem cascalho. Uma mistura das duas. Areia molhada. Areia grossa onde afundam os pés descalços. O esplendor laranja é daí o pôr-do-sol no oceano. Que oceano? Porquê o pôr-do-sol e não o alvorecer? Porquê o oceano e não um mar interior? Por que não uma lagoa? O sal. O gosto do sal pendurado no céu-da-boca. Inundando-o. A ausência de vento. Já disse sitllness. Terei de dizê-lo de outra forma, perdoem o incómodo textual. Stillness=quietude. Tranquilidade. Quietude. Ausência de vento. Algures disse-o absent mind. Disseram-no? Assim, haverá que rectificar, que mudar, que dizer absent mind=mente alienada. Provavelmente uma tradução imprecisa. Continuam chegando palavras. Bursa. Han. Hammock. Nesga. Nesga de sentimento. O pôr-do-sol. Uma lagoa. Uma bruma laranja. A primeira sensação. O passado. A vida anterior. (Conhecimento=memória recuperada). Noctâmbulo. O futuro. Noctívago. O não vivido. O sonhado. O temido. A insegurança. O medo. A ausência de vento. Uma praia tranquila. Já não um lugar fechado. Um lugar aberto. Quietude. Já disse quietude. Certamente, disse-o. Quietude. O aroma. O aroma do mar. O sal. Beira-mar ou lagoa salgada. Sem dúvida isto é real. O laranja. A cor da cegueira. Ou da luz? A cor do princípio. Do início. De quando não éramos. Não era eu. Não era ninguém ainda. O céu por detrás das pálpebras. Abri-las. Não posso. Gritar. Lançar o medo para fora. O alento. Sinto-o. O alento. O alento próprio. Campei. Arbeit. Stillness. Uskok. Podias. Amor. Lava. Lama. Cascalho. Fumarola. O meu alento. Pôr-do-sol ou alvorada? O sol reflectido na água. O aroma salgado. O laranja. Dissipando-se. Chego. Retorno. Venho. Vou. O não vivido. A sucessão de imagens. Uma cavala afogada numa placa de gelo. Três peixes-pau-malhados pas com as barbatanas abertas. O mar. Um caranguejo acariciando-me um pé. Os pés afundando-se na areia. Conjuro a memória com um mantra de palavras inventadas ou sonhadas, lembradas ou, provavelmente, nunca antes pronunciadas: Laranja. Campei. Arbeit. Stillness. Uskok. Podias. Móvendose. Samsara. Amor. Lava. Lama. Cascalho. Semut. Fumarola. Holem, ou Halam, ou mesmo Hokhim. Sentir-se atoado. Afundando-se. Perdido. Pesado. A ausência de vento. O sal. A insegurança. O medo. Avançando num gel laranja. Sem dúvida isto é real. Pôr-do-sol? Alvorada? Já disse stillness. Quietude. Já disse quietude. Certamente, disse-o.


II.PRAIA


O cavaleiro acorda no areal de Carnota, enferrujada a armadura pela humidade e o salitre. Quanto tempo deitado na areia? Quanto os caranguejos a arranhar por debaixo da cota de malha? Pôr-do-sol com as águas do oceano reflectidas pelo sol. As ondas com o seu ir e vir, cíclico e cansado. O aroma do mar. Os caranguejos por debaixo da cota de malha. Arranhando. O cavaleiro desfeito e triste, derrotado e ou sem rumo. No areal de Carnota. Acordando. De um sonho de instantes ou de séculos. De um sonho ou de uma batalha perdida. Enferrujada a armadura pela humidade e o salitre. Os pés afundando-se na areia. O mar imenso e os bandos de corvos marinhos. As ondas com o seu ir e vir, cíclico e cansado. O cavaleiro erguendo-se no areal de Carnota. Confuso e espantado. Olhando para o mar e para o monte Pindo. Alternadamente. Sem saber onde está. Sem recordar que se terá passado. Milhares de imagens vindas dos quatro cantos da memória. Desordenadas. Em uníssono. Cavalgando umas sobre as outras, sem descanso. O dragão. A refrega com lança e cavalgadura. O escudo perdido no combate. Onde o cavalo? Onde as pegadas na areia? Quanto tempo deitado? Quanto inconsciente? Onde o dragão marinho? Levaria com ele o cavalo? Comê-lo-ia, besta voraz e terrível? Confuso e espantado. Os pés afundando-se na areia. Sem saber onde está. No areal de Carnota. Cardumes de sardinhas fazendo brilhar o mar. Sem recordar que se terá passado. Com sensações desencontradas. Com uma teia laranja que lhe cobre os olhos. Espanto e desassossego. Onde o cavalo? Onde o dragão? Onde a donzela de beleza infinita? O mar imenso e os bandos de corvos marinhos. Acordando. O cavaleiro. De um sonho de instantes ou de séculos. Milhares de imagens vindas dos quatro cantos da memória. Os pés afundando-se na areia. Enferrujada a armadura pela humidade e o salitre. As ondas com o seu ir e vir, cíclico e cansado. Onde o combate? Levaria o dragão o cavalo preso nas suas garras? Sem saber onde está. Confuso e espantado. Cardumes de sardinhas fazendo brilhar o mar. O escudo perdido no fragor da luta. As plumas e a celada, as esporas espalhadas entre concheiros de animais mortos: vieiras, pés-de-burro, peneiras, conquilhas, mexilhões, arcas, búzios, caramujos, lapas, ostras e conchas turbinadas. Onde o dragão marinho? Espantado e inquieto. Alternadamente. Sem saber onde está. Olhando para o mar e para o monte Pindo. Milhares de imagens vindas dos quatro cantos da memória. As ondas com o seu ir e vir, cíclico e cansado. O aroma do mar. As algas pendurando-se nos cotovelos e nos joelhos, pegando-se ao espaldar de aço e aos botins de veludo. Impedindo-lhe o movimento ágil. Os ostraceiros percorrendo a beira-mar num voo baixo de inspecção e busca, na procura de ostras, ouriços ou peneiras. Pôr-do-sol, com o sol reflectindo nas águas de um mar invadido por cardumes. Uma fenda no tempo. Uma fenda nos sonhos. Uma voz que trespassa o véu laranja, o magma laranja, o gel laranja que o cobre tudo. O aroma do mar. A lança partida em mil bocados, que o mar vai trazendo, que se misturam com as lembranças da batalha singular, com a visão do monstro de cabeça de dragão e cauda de serpente, com escamas armadas de picos e com caninos retorcidos. Uma fenda de tempo. As imagens que retornam. Centos, milhares de imagens vindas dos quatro cantos da memória. Imprecisas. Sobrepostas. Terríveis em o seu quê de rememoração da violência. No areal de Carnota. Acordando. De um sonho de instantes ou de séculos. De um sonho ou de uma batalha perdida. Uma voz que trespassa o véu laranja, o magma laranja, o gel laranja, que o cobre tudo.


III. SAMSARA


Samsara. Samsara. Samsara. O vento. Não se sente outra coisa que o vento. Do deserto de rochas e térreos ermos, queimados pelas geadas e pelo sal da lagoa, surge uma miragem. Encavalitado, um lama vestido com uma túnica laranja. Por entre as lajes do vale, um rio desce das montanhas. Primavera. O rio traz muita água. Tudo o que flúi é formoso: o amor, o rio, o tempo, a palavra. Degelo. Vento. Frio. O lama. Na ribeira uma arvora única, torturada pela erosão eólica. Um homem despoja-se da túnica laranja. Estende os seus braços e penetra na água. Até aos tornozelos, até aos joelhos, até às coxas, até que, ao chegar a água às virilhas, detém o seu caminhar. Esplêndido. O corpo fibroso. Esplêndido. Samsara, repete em voz alta. Samsara. Samsara. Samsara, repete contra o vento e a palavra ecoa-lhe na face descomposta pelo frio. Samsara. Samsara. Samsara, repete como um mantra adormecedor. Remoinha-se a água em torno da sua cintura. Tudo o que permanece é formoso: o amor, o remoinho, o tempo, a palavra. Samsara. O vento. A água até ao vórtice. O correr da água com o seu fino murmúrio. Primavera. Degelo. Deve ser a tarde no dia. O lama parece cansado, sujo pelo pó do caminho. Um corpo fibroso, moldado em exercícios diários de alongamento e ritmo. Um colar de contas à volta do colo. Um fio vermelho no pulso esquerdo. A companhia do eu. O cabelo rapado. Os lábios índigo. As vestes de meditação. Uma marca de nascença na espádua direita. O correr da água e o seu fino murmúrio. Maravilha do que já foi e vai voltar a ser: o amor, o rio, o tempo, a palavra, a roda das mutações do karma até atingir o nirvana. Maravilha do que foi. Maravilha do que há-de ser. Samsara. O cavalo que joga com a túnica laranja. O lama. Fora do mundo. O rio, que nunca traz a mesma água, que vai dar ao mar, tão longe. O lama, que treme de frio, que recita um mantra estranho. Samsara. Samsara. Samsara. Um colar de contas à volta do colo. Um fio vermelho no pulso esquerdo. Tremendo. Sai do banho tremendo. Seca-se esbracejando, proferindo chilreios histéricos, de ave ferida em sobressaltos, que eliminam o ruído de fundo (o do vento, o da água que flúi, mesmo o do frio). Uma águia assenhora-se do céu. Voo de exploração e procura. O lama veste a túnica laranja e, por cima, uma outra violeta, para cortar o frio de vez, o que lhe faz estalar as têmporas. Degelo. Primavera. Tudo o que flúi é formoso. A cavalgadura come uns rebentos à beira-rio. O lama senta-se no chão. Mudou, de súbito. Deixou de tremer e começa uma récita exótica: Han. Joshi. Hammock. Guiding. Gálata. Xiuxi. Ayán. Guanxi. Uskok. Peng. Waiguro. Tsui. Samjang. Mawas. Sumum. Salam. Hoshi-hoshi… Para, de imediato, ensarilhar a sua sequência preferida: Samsara… Samsara… Samsara… O vento. Já não se sente outra coisa senão o vento, que abafa o som da corrente de água, que agora aparece – estática – aos olhos espantados do lama. O da túnica laranja. O da túnica violeta. Primavera. Quietude. O rio nunca traz a mesma água. Tudo o que flúi é formoso: o amor, o rio, o tempo, a palavra. O vento. Não se sente outra coisa senão o vento e o silêncio da árvore torturada pelo embate da areia, que a desgasta, que a aflige, que a raspa, que e a lustra. Os lábios índigo. Um colar de contas à volta do colo. Um fio vermelho no pulso esquerdo. Samsara. Samsara. Samsara.


IV. WHISPERING


À distância uma donzela observa o cavaleiro. Whispering. Whispering your name as a healthy mantra. Murmurando. Murmurando o teu nome como um mantra salutífero. Que nome? Galahaz? Lancelot? Artur? Não, Artur, não. Amadis? Palmerín? Glaxo? Que importa. O teu nome. O nome do cavaleiro. O nome do cavaleiro. Murmurando. Como um mantra salutar. Desde o outeiro. A donzela. Que donzela? Genebra? Ofélia? Desdémona? Galadriel? Que importa. O seu nome. O nome da donzela. Murmurando. O mar imenso e os bandos de corvos marinhos em voo rasante, linear, directo. Os penedos batidos pela espuma das ondas no seu ir e vir, cíclico e cansado. Espanto e desassossego, em equilíbrio instável. Onde o dragão marinho de escamas com espinhas e língua trífida? O cavaleiro avançando na areia. Pesadamente. Devagar. Despojando-se das peças da armadura. O aroma a mar. A lança partida em mil bocados que o mar vai trazendo, que se misturam com as lembranças de uma batalha singular, com a visão do monstro de cabeça de dragão e cauda de serpente, com escamas armadas e caninos retorcidos. A refrega com lança e cavalgadura. O escudo perdido no combate. Onde o cavalo de anca conhecida? Algas penduradas das protecções dos cotovelos e dos joelhos, juntas ao espaldar de aço e aos botins de veludo. Impedindo o avanço do cavaleiro, que se afunda na areia, que se despoja das peças da armadura, da cota de malha, dos carangueijos que lhe laceram as carnes, que já despido, avança agora com resolução e força, que enfrenta ao mar, que se deixa levar pelas ondas – magnífico e garboso – que entra no oceano com a agilidade de cetáceo, que já não olha para a praia, que brinca com as ondas minúsculas, tranquilas, pausadas. Não há vento. Uma fenda no tempo. À distância alguém canta. Espumas. Frio. Uma cavala afogada numa placa de gelo. Cardumes de sardinhas fazendo brilhar o mar. O cavaleiro-golfinho, de guelras abundantes e membranas entre os dedos. O cavaleiro-sereia, de barbatana dorsal e escamas nas têmporas. Uma fenda no tempo. Quando ninguém era. O cavaleiro-tritão, de bater poderoso e aspecto anfíbio. O cavaleiro-garoupa, de lábios carnosos e tristes. À distância, alguém murmura o nome do amado, como um mantra salutar. Não há vento. Uma fenda no tempo. À distância, uma donzela observa o cavaleiro. Whispering. Whispering your name as a healthy mantra. Murmurando. Murmurando o teu nome como um mantra salutar.


V. CONJURO

Conjuro a memória numa série de palavras inventadas, lembradas ou, provavelmente, nunca antes pronunciadas: Laranxa. Campei. Arbeit. Stillness. Uskok. Movéndose. Amor. Lava. Lama. Grixo. Fumarola. Holem ou Halam, ou mesmo Hohkim. Uma voz, duas vozes, um coro de vozes que chegam e se esvaem, que só dizem uma palavra, que entram e saem do sonho para pronunciar uma verbalização única, terrível na sua síntese, ambígua no seu sentido. Desconcertante no seu som, que não se associa com uma imagem. Alternadamente. Imprecisas. Sobrepostas. Ambíguas. Ao longe, no areal, afastada do mar – espanto e desassossego – a donzela acena frente à praia. Ondeia o seu lenço de seda. Graciosa. Murmurando o teu nome e pedindo dos deuses ajuda. No pôr-do-sol ou na alvorada. Hoshi-hoshi. A beleza. A suavidade intuída das formas num mar laranja, num gel laranja, numa nuvem laranja. Impenetrável no seu quê de estátua o cavaleiro avança deixando pegadas, que a água cobre sem pudor. Movendo-se. Uma sensação de pisar pela primeira vez as areias ensanguentadas pelo combate. Sem dar conta do que se teria passado. Sensações desencontradas. Palmerín? Glaxo? Que importa. Confuso e maravilhado. No areal de Carnota. Os ostraceiros no seu voo perscrutador em busca de ostras e peneiras. Uma linha traçada pelos ouriços descarnados, sem púas, sem vida, espalhados entre relógios e pés-de-burro, entre arcas e berbigões, entre algas secas e madeiras lambidas pela areia. Vozes que retornam como um coro descompassado, sem ritmo, martelando nas têmporas. Complexas. Desconhecidas. Sem imagens de referência. Ambíguas. Silk. Gálata. Ayán. Craving. A donzela. Graciosa. Murmurando. Movendo o lenço de seda laranja. A cor do princípio. Do início. De quando não éramos. Não era eu. Não era ninguém ainda. Nirvana. O céu por detrás das pálpebras laranjas. Abri-las. Não sei se posso. Tenho medo. Caminhar para a donzela. Graciosa. Genebra? Ofélia? Desdémona? Galadriel? Que importa. O seu nome. O nome da donzela. Murmurando. Murmurando o teu nome como uma mantra salutar. Conjuro a memória com uma série de palavras inventadas ou sonhadas, lembradas ou, provavelmente, nunca antes pronunciadas: Laranxa. Campei. Arbeit. Stillness. Uskok. Podias. Movéndose. Amor. Lava. Lama. Grixo. Carino. Fumarola. Silk. Gálata. Xiuxi. Ayán. Craving. Guanxi. Centenas, milhares de imagens vindas dos quatro cantos da memória. Imprecisas. Sobrepostas. Terríveis no seu quê de rememoração da violência. Bursa. Han. Hammock. Nesgo. Uma bruma laranja. A primeira sensação. O passado. A vida anterior. O sentimento de pisar, pela primeira vez, as areias ensanguentadas do combate. Uma fenda no tempo. Espumas. Frio. Uma cavala afogada numa placa de gelo. Cardumes de sardinhas fazendo brilhar o mar. As plumas e a celada, as esporas misturadas entre as conchas de animais mortos. Onde o dragão marinho? O mar imenso e os bandos de corvos marinhos em voo rasante, linear, directo. Os penedos batidos pela espuma das ondas no seu ir e vir, cíclico e cansado. Murmurando. Murmurando o teu nome como um mantra salutar. Avançando. Afundando-se. Caminhando sem deixar pegadas na areia lambida pelas ondas. Despido. Livre. Num mar laranja. Chego. Volto. Venho. Vou. O não vivido. A sucessão de imagens. O passado. A vida anterior. Podias. Uskok. Ayán. Hoshi-hoshi. Ofelia. Galahaz. Desdémona. Amor. Lava. Mundur. A vida anterior. Poting. Carino. Nesgo. Piñeiro. Xardín. Hammock. Xiuxi. Quando ninguém era. Lembranças. Labirintos. Memória entrelaçada. Olhando para o mar e para o Monte Pindo. Murmurando. Murmurando o teu nome como um mantra salutar. O pinheiro no jardim imperial.


No início tudo era laranja. Laranja da textura da seda, como um véu laranja em todos os tons possíveis do laranja. Quero dizer: uma nuvem laranja, um magma laranja, um gel laranja, uma sensação laranja. Movimentos por impulsos. Provavelmente a primeira vaga da memória. As ondas no seu ir e vir. Uma sensação de pisar, pela primeira vez, de deixar pegadas, de como o chão se transforma ao nosso passo. Conjuro a memória com um mantra de palavras inventadas ou sonhadas, lembradas ou, provavelmente, nunca antes pronunciadas. Em uníssono. Há mais prazer na renúncia ou no abandono dos sentidos? No início tudo era laranja. Laranja da textura da seda, como um véu laranja em todos os tons possíveis do laranja. Quero dizer: uma nuvem laranja, um magma laranja, um gel laranja, uma sensação laranja. Maravilha do que já foi e vai voltar a ser: o amor, o rio, o tempo, a palavra, a roda das mutações do karma até atingir o nirvana. Maravilha do que foi. Maravilha do que há-de voltar a ser. Há mais prazer na renúncia ou no abandono dos sentidos? Samsara. Samsara. Samsara. Um colar de contas à volta do colo. Um fio vermelho no pulso esquerdo. Samsara. Samsara. Samsara.



APÊNDICE: VOCABULÁRIO PRESCINDÍVEL


Este vocabulário que agora vos apresento será prescindível para os mais e imprescindível para os menos, curioso para uns e manifestação de arrogância para outros. São também opções, e não serei eu que me revolte contra as interpretações que disto se façam. Só quero dizer-lhes que este conto é um sonho (ou melhor, o resultado de um sonho) e que, por ventura, nos meus sonhos (desejo persistir nesta condição) sou prolífico em línguas e articulações diversas.

A ordem, ainda que o pareça não é necessariamente alfabética, pela razão de eu utilizar uma mesma grafia para todas as línguas misturadas e não, como seria canónico, os diferentes alfabetos que as caracterizam. Alguns saberão dissimular esta circunstância e outros procurarão no mesmo feito um motivo para denigrar quem isto escreve. Que lhes faça bom proveito!


Alepo. Cidade síria.

Arbeit. Palavra germânica. Significa trabalho. Era uma das expressões inscritas na entrada do campo de concentração de Buchenwald, onde foram massacrados tantos judeus no holocausto.

Ayán. Notável, líder local do Império Otomano.

Babá. Expressão otomana. Literalmente, pai. Utilizada para designar os homens respeitáveis pela sua santidade.

Bursa. Cidade do Império Otomano.

Campei. Fórmula utilizada para brindar em chinês mandarim, equivalente a saúde e sorte.

Carino. Em italiano, bonito, bem parecido.

Guanxi. Palavra do chinês mandarim para expressar relações pessoais, contactos, influências.

Guiding. Em chinês, norma, regra.

Hammock. Em inglês, maca.

Han. Nome que se dava às pousadas no Império Otomano. Etnia chinesa.

Hoshi-hoshi. Em chinês mandarim, significa, formoso, bonito, bem parecido.

Joshi. Nome dado a um tipo de suicídio a dois no Japão.

Mawas. Mono, no vocabulário na língua franca da Indonésia (Kamut asas).

Mundur. Caminhar atrás, na língua franca da Indonésia (Kamut asas).

Peng. Criatura da mitologia oriental, com forma de águia gigante, capaz de erguer um elefante com as suas garras imensas.

Podias. Em grego, a pé; caminhando.

Pomme. Em francês, maçã.

Poting. Nome próprio em chinês, pouco comum. O seu sgnificado é confuso, mas seria algo semelhante a «o pinheiro no jardim imperial». O pinheiro na simbologia do Extremo Oriente é a representação da imortalidade, explicado pela persistência de folhagem e pela incorruptibilidade da resina.

Salam. Saudação, em árabe.

Samjang. Nome próprio, em tibetano.

Samsara. Localidade no norte da Índia, onde existe um mosteiro de lamas tibetanos.

Semut. Expressão indonésia (Kamut asas) para designar uma formiga.

Silk. Seda, em inglês.

Tsui. Nome próprio, em tibetano.

Uskok. Denominação turca para os bandidos da Dalmácia, no tempo do Império Otomano.

Waiguro. Expressão chinesa, do mandarim, para designar um estrangeiro.

Xiuixi. Expressão chinesa, do mandarim, para designar uma sono leve ou uma sesta.